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Março é o mês de conscientização sobre o Transtorno Bipolar: amar de perto também é arte
O mundo inteiro ama Vincent van Gogh. Ama o céu espiralado de “A Noite Estrelada”, os girassóis em fogo, os autorretratos de olhar febril. Ama o gênio, o mito, a lenda. Ama agora, quando ele não sangra mais. Quando suas cartas já não pedem ajuda. Quando seus surtos não ameaçam a paz doméstica, nem sua presença desconcerta os salões. Agora é fácil amá-lo. Agora que está morto.
Mas em vida, Vincent foi o “louco de Hades”. Desprezado, temido, apedrejado. Seus olhos viam a beleza em tudo, menos em si. Suas mãos pintavam o mundo, mas nunca conseguiram segurá-lo. Seus quadros, hoje avaliados em milhões, não compraram a dignidade que lhe foi negada. Suas crises – hoje romantizadas – destruíram lares, relações, empregos. Seu talento pulsava ao lado da dor, da impulsividade, da instabilidade, da desesperança. Van Gogh viveu o lado mais cruel do transtorno bipolar: o desprezo em vida e a glória póstuma. O gênio que pintava para respirar, e que terminou tragado pelo silêncio de um tiro no peito.
O transtorno bipolar é isso: a travessia insana entre o céu e o inferno. Uma montanha-russa sem freios onde, num dia, o mundo parece possível, e no outro, insuportável. Caracteriza-se por episódios de mania – euforia, grandiosidade, impulsividade, agitação – e episódios de depressão profunda – tristeza intensa, culpa, lentidão, ideias de morte. Tudo misturado, confuso, às vezes na mesma semana, no mesmo dia. O diagnóstico ainda é tardio, muitas vezes confundido com depressão unipolar ou transtornos de personalidade. E enquanto o diagnóstico não vem, a pessoa perde tempo, perde laços, perde a si mesma.
Março é o mês de conscientização sobre o transtorno bipolar, e o dia 30 é simbólico: marca o nascimento de Van Gogh, que provavelmente viveu – e morreu – dentro das estatísticas mais cruéis da psiquiatria. Entre os que convivem com o transtorno, cerca de 1 em cada 5 morre por suicídio. É o transtorno com maior taxa de letalidade. Muitas vezes, o alívio é buscado em substâncias, álcool, drogas. Tentativas de silenciar a dor que os outros não veem. Porque por fora, a pele está íntegra. Mas por dentro, a mente morde o coração.
Amar de perto alguém com transtorno bipolar exige mais que afeto: exige força. Porque não se ama apenas a parte luminosa. É preciso aprender a amar também o caos, a oscilação, a exaustão. A lidar com acusações injustas, com o silêncio impenetrável ou com o entusiasmo explosivo. E sim, às vezes parece impossível. Como bem escreve Sonia Zaghetto, “a compaixão é uma arte difícil. A paciência incondicional é para poucos. Raríssimos, aliás.”
Por isso, no Hospital Nardini, acreditamos que ninguém deveria atravessar esse caminho sozinho. Temos desenvolvido grupos de psicoeducação para familiares de pacientes internados na saúde mental, com o objetivo de lançar luz sobre esse labirinto. Para ensinar que, por trás do comportamento que fere, há sofrimento. Que não se trata de fraqueza, nem de falta de caráter. Que compreender o transtorno é o primeiro passo para restaurar pontes.
Porque, às vezes, um ouvido atento salva mais que um remédio. Um gesto de acolhimento impede que alguém embarque na barca de Caronte. Um abraço pode interromper uma carta de despedida.
Van Gogh morreu sem saber o valor de sua obra. Mas sua dor deu cor ao mundo. Que hoje, neste mês de março – mês de conscientização sobre o transtorno bipolar – possamos fazer mais do que admirá-lo: que possamos aprender com ele. E com tantos outros que ainda respiram entre nós, buscando apenas um lugar seguro para existir.
A arte sobreviveu. A dor, não precisaria ter vencido.
Se você ou alguém que você ama vive com sintomas de transtorno bipolar, não adie a busca por ajuda. Transtorno bipolar tem tratamento. É possível estabilizar a vida, recuperar os vínculos, resgatar projetos, reaprender o amor e o prazer de estar vivo. Procurar um psiquiatra é um ato de coragem — e também de amor.
Dr. Adiel Rios
Coordenador da Psiquiatria do HCDRN
Supervisor do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da SMS – Mauá